Senhor Deus dos desgraçados!/ Dizei-me vós, senhor Deus!
se é loucura... se é verdade /tanto horror perante os céus?!
Castro Alves em “Navio Negreiro”
* Guilherme Peres (Pesquisador e fundador do IPAHB)
Na manhã do dia 6 de setembro de 1842, uma belonave britânica de 26 canhões denominada H.M.S.Cleópatra, adentrava a baia de Guanabara para uma escala de alguns dias destinados ao abastecimento. Sua missão nesta viagem era transportar o tenente-general sir William Gomm, que ia tomar posse como governador nas ilhas Maurício. Ancorado próximo ao porto estava barco “Malabar”, também de bandeira inglesa com 64 canhões, no qual fazia parte da tripulação o reverendo inglês Pascoe Grenfell Hill que por questões pessoais, pediu transferência para o “Cleópatra”. Extasiado diante da imensidão da baia, o pastor registrou em seu diário: “A magnificência incomparável da baia do Rio, apertada na entrada, depois se abrindo em uma circunferência de dezessete léguas; suas cem ilhas; as montanhas que a envolvem mostrando cada mudança de contorno, coberta por uma riqueza de verdura do litoral até os cimos... misturando seus cumes com as nuvens; tudo isso compõe uma variedade e beleza que dificilmente cansa a vista. A cidade do lado esquerdo da entrada fica a quatro ou cinco milhas de distância da entrada”.
Ao desembarcar em frente ao Hotel Pharoux, comenta o grande movimento do cais nos barcos que saíam ou chegavam levando e trazendo passageiros e víveres dos navios ancorados ao largo. Contemplou uma praça na qual observou uma grande profusão de frutas e verduras espalhadas pelo chão e apregoadas por escravos.
“Uma alegria cordial se misturam ao redor de um pequeno fogareiro de carvão onde eles fritam seus peixes ou cozinham sua raiz de mandioca e batata doce. O trabalho mais pesado que se vê na rua é o do carregador de café, que leva sacos pesados na cabeça com seus passos acelerados, ao som de chaqualhantes substâncias dentro de uma bexiga que o chefe do grupo sacode e os outros acompanham cantando”.
Critica com veemência o Brasil por sua condição de país escravista, comentando que os casos de tortura e crueldade não eram divulgados pelos jornais do Rio de Janeiro, apenas anunciando casos de negros fugidos de uma jornada sobrecarregada de trabalho e subnutridos “dependendo dos caprichos do mau humor ou da avareza de seu dono”. Assistiu a um leilão de “mais ou menos vinte e cinco escravos de ambos os sexos, decentemente vestidos sentados em bancos atrás de uma mesa comprida, onde um de cada vez subia para ser melhor examinado pelos arrematadores. Um ar de obstinação parecia expressar seus sentimentos de degradação por estarem sendo postos à venda.”
No dia 14 de setembro daquele ano o “Cleópatra” levantou ferros singrando majestosamente em direção ao oceano Atlântico, buscando o continente africano.. Ao iniciar essa viajem o pastor Hill não suspeitava que fosse testemunhar para a posteridade através de seu diário, talvez o mais contundente registro que temos conhecimento das condições degradantes de um navio brasileiro destinado ao transporte de escravos, após ser aprisionado pelos ingleses. Num tom seco e direto, o pastor narra a ventura desse barco “tumbeiro” denominado “Progresso”, que seguia para o Rio de Janeiro. Deixando as ilhas Maurício, o ‘Cleópatra” se dirigiu-se à foz dos rios da região da costa de Moçambique, infestada de barcos negreiros. “Um novo interesse aqui se ligava a cada nau que fosse vista. O mercado de escravos na costa da África no presente momento, está quase confinado aos distritos de Quelimane e Sofala, tendo cessado no Porto, graças aos zelosos empenhos dos últimos e do presente governador”. Ancorado fora da barra, no dia 23 de março de 1843 o comandante mandou uma barca subir o rio em direção a cidade de Quelimane, trazendo na volta uma carta do governador narrando que dois barcos brasileiros, o “Desengano” e o “Confidência”, foram capturados pelo brigue H. M. Lily, cuja tripulação composta de brasileiros e portugueses, apresentara-se a ele, tendo sido devolvidos aos seus respectivos países.
No dia 31, uma embarcação de dois mastros foi avistada ao longe “indo furtivamente ao longo da margem” tendo sido fracassado a tentativa do Cleópatra em contatá-la, alguns escaleres foram enviados “para vigiarem os pequenos rios ao longo da costa.”.
Ao amanhecer do dia 12 de abril “ao voltarmos para Quelimare, o vigia no alto do mastro principal percebeu a sotavento uma embarcação que pela distância mal era visível; mas sua localização tendo sido considerada muito suspeita, a ordem foi de dirigir-se para ela”. Um vento forte seguido de chuva dificultava a perseguição à estranha embarcação. Após algum tempo o sol voltou a brilhar revelando próximo um “bergantim de linhas arrojadas como nós... desmastrado durante a ventania”. De repente o barco içou as velas pôs-se em fuga desfraldando a bandeira brasileira, em resposta a bandeira britânica que tremulada no mastro perseguidor.
Posicionaram-se os homens da tripulação em torno aos canhões e ouviu-se o primeiro tiro de advertência em direção ao bergantim. Seguiu-se mais alguns outros, sendo ignorados pelo perseguido até que, perdendo distância, arriou as velas e aguardou aproximação de seu captor Um escaler conduziu um oficial para tomar posse do navio, e substituir a bandeira brasileira pela bandeira britânica, pois aparentemente não havia dúvidas quanto sua atividade de navio negreiro. Seguiu-se o capitão acompanhado do narrador deste diário e “um cirurgião para examinar o estado de saúde a bordo da presa”.
O APRISIONAMENTO
A visão do quadro degradante que o pastor viu, mesmo em sua narrativa fria é horripilante. Negros nus e famintos se atropelavam no convés do navio arrebentando barricas de farinha, “a raiz da mandioca em pó; outros tendo quebrado os caixotes seguravam grandes pedaços de carne de porco e de boi; e alguns pegaram aves das gaiolas e as devoravam cruas”. Panos torcidos eram enfiados nos tonéis de aguardente, “um forte rum brasileiro do qual beberam em excesso”. Os gritos ensurdecedores de alegria foram ouvidos depois que toda a tripulação inglesa subiu a bordo para livrá-los das correntes de ferro, as quais muitos deles ainda estavam presos. Após a tripulação de dezessete homens serem transferida para o barco inglês composto de três espanhóis e o restante de portugueses e brasileiros, foi avaliado a situação: tratava-se do navio brasileiro “Progresso”, deslocando cerca de 140 toneladas procedente de Paranaguá e seguia em direção ao Rio de Janeiro. Sua carga era composta de 447 negros. “Desses 189 eram homens, poucos, no entanto, passando dos vinte anos; 45 mulheres e 213 meninos”. Havia um grande número de doentes a bordo, suspeitando-se que a princípio fosse de 25, mais tarde descobriu-se uma quantidade maior.
Segundo a tripulação o comandante havia perecido afogado no porto de embarque. Tempos depois se descobriu que ele permaneceu escondido entre seus subordinados para fugir ao rigor das leis inglesas. Dois espanhóis e um português voltaram para o barco “Progresso” com a tarefa de cozinharem para os negros, juntamente com nove marinheiros, um tenente, um mestre quarteleiro, um contramestre e o pastor Hill, autor do diário do qual estamos seguindo seu roteiro.
Ao longo do tombadilho o pastor descreve os negros recentemente libertados, dormindo, enquanto a nave desliza suavemente à brisa do mar calmo. Corpos esqueléticos, uns sobre os outros, disputam o pequeno espaço. De repente, “o céu começou a se encher de nuvens e um nevoeiro espalhou-se pelo horizonte para barlavento”.
Os fortes ventos seguidos de chuva provocaram as cenas de horror que se seguiram, com os marinheiros querendo chegar até as cordas para recolher as velas, e a pisotearem os negros que se alvoroçaram aos gritos acompanhados da ordem de mandar todos descer para o porão. Durante a noite, o calor sufocante agitou “quatrocentos infelizes seres humanos apertados em um porão com doze jardas de comprimento... rapidamente começaram a fazer um esforço para voltar ao ar livre” através das escotilhas fechadas em cima deles.
“A única passagem de ar, o calor sufocante do porão, e, talvez o pânico da situação inusitada fez com eles pressionassem... acumularam-se nas grades, e agarravam-se a ela lutando por ar. Mas com isso barravam completamente a sua entrada. Posso afirmar sem exagero que os gritos, o calor “a fumaça do tormento deles” que subia não pode ser comparadas a nada desse mundo. Um dos espanhóis avisou-se que a conseqüência disso seria de muitas mortes.
Pela manhã, cinqüenta e quatro corpos de homens, mulheres e crianças foram conduzidas para o tombadilho e jogados ao mar. “Era uma cena horrorosa vê-los passar um a um, os membros enrijecidos cobertos de sangue e de sujeira” Outros estavam feridos ou fracos demais para se erguer. Haviam sido pisoteados. “Alguns ainda tremendo foram deitados no tombadilho para morrer, água salgada eram jogada sobre eles para revivê-los, e um pouco de água entornada em suas bocas”.
A refeição daquele dia consistia de farinha e água, “quase metade de meio litro que eles agarravam com inconcebível avidez... suas gargantas deviam estar ressecadas pelos choros e gritos que vararam a noite adentro”.
Na véspera de Páscoa, o pastor parece desabafar diante de tanta degradação: “O mundo não consegue apresentar um espetáculo mais chocante da desgraça humana do que esse nosso navio apresenta. Parece que uma cena tão angustiante possa ser testemunhada sem causar um efeito prejudicial no espectador... depois se familiarizando, ele vai em certo grau insensibilizando seus sentimentos”.
Dia de Páscoa, domingo, 16 de abril. Avistou-se o “Cleópatra” com sinais de que queria se comunicar, sendo feito a aproximação. Receberam “um velho português chamado Valerian, para ajudar a reparar nossas velas que eram velhas e fracas”, e um cirurgião assistente “que começou a examinar os doentes. A maioria dos casos era de disenteria e de ferimentos ulcerados. Um homem tinha uma profunda escara infeccionada causada por chicotadas. Uma pobre criança de seis ou sete anos perdeu quase todo o dedo grande do pé comido por “niguas”, ou seja, bicho de pé”.
O ROUBO DA ÁGUA
Na manhã de segunda feira, os meninos que anteriormente haviam sido rejeitados à bordo do “Cleópatra” por suspeitas de varíola, finalmente foram aceitos cerca de cinqüenta, pois se tratava de “violenta espécie de coceira”. Acompanhados de víveres para alimentá-los, consistindo de “dois sacos de arroz, um de milho moído, uma boa quantidade de carne-seca... que só desse último artigo o “Progresso” carregava um estoque suficiente para alimentar os negros durante dois meses”, além de seiscentos sacos de feijão miúdo, guardado abaixo do tombadilho dos escravos, arroz inferior, farinha, e “22 enormes tonéis, cada uma comportando cinco ou seis barricas cada”.
Referindo-se ao depósito de provisões o pastor registra: “armários trancados cheios de cerveja comum e de cerveja preta forte; barris de vinho; licores de várias espécies; macarrão; vermiceli; tapioca da melhor qualidade; caixas de picles ingleses, cada uma contendo doze vidros; caixas de charutos; uva moscatel; tâmaras, amêndoas, nozes etc.etc. Os viveiros no tombadilho estão cheios de aves e patos e tem onze porcos”.
O “Cleópatra” afastou-se rapidamente dando o último adeus de despedida. Durante a jornada o espanhol que fazia parte da tripulação anterior em atividade no navio brasileiro “Progresso”, revelou ao pastor dados interessantes de sua vil profissão. Narrou que durante os “dois ou três meses”, em que ficaram à espera do embarque da carga humana na praia, os negros ficaram muito doentes, “Alguns deles tinham vindo de longe no interior e chegaram em condições deploráveis e cinqüenta foram rejeitados como incapacitados para viajar”.
Curiosa a resposta do tripulante quando perguntado se acreditava no fim do tráfego de escravos, que cada vez mais era combatido pelas nações que assinaram um pacto para esse fim, “ele achava que no Brasil, onde havia grandes enseadas isoladas que facilitavam o contrabando, haveria uma grande dificuldade em suprimir o tráfego, embora se a autoridade do governo simpatizasse com a causa poderia fazer muito”.
O “Progresso” havia sido o quarto navio apreendido naquele ano. “Em Quelimane, oito ou nove navios pegam sua carga anualmente” continua o espanhol “e, calculando por baixo, com quinhentos escravos em cada um... agora nenhum escapa, é um trabalho para homens desesperados... Na costa leste os negros geralmente são pagos em dinheiro, às vezes em “fazendas”, algodão grosseiro a um custo mais ou menos de dezoito dólares por homem e doze por meninos. No Rio de Janeiro, seu valor estimativo é de 500 mil réis por homens, 400 mil réis por mulheres e 400 mil réis por meninos. Assim sendo uma carga de quinhentos escravos, a um preço vil, o lucro vai passar de 19.000 libras”.
Uma manhã um negro morreu e foi jogado ao mar. Seu corpo flutuou em torno do navio batendo contra o casco “de barriga para cima durante meia hora”. A tripulação ficou temerosa que algum tubarão pudesse alcançá-lo. Finalmente o cadáver se afastou para todo o sempre. O maior sofrimento dos negros era a sede. Com a água racionada eles sorviam as gotas de chuva que pingavam das velas. “Colam seus lábios nos mastros molhados e engatinham até as gaiolas das aves para compartilhar os alimentos”. Na hora da refeição, constando de feijão cozido com arroz, a comida era distribuída em tinas “ao redor das quais eles estão sentados em grupo de dez, e, a um sinal, começam a mergulhar suas mãos na mistura e com grande habilidade levam o conteúdo até suas bocas”.
. Um tubarão de grande tamanho foi pescado pela guarnição e serviu de refeição para os negros que se arregalaram com alegria durante a refeição. Porém, antes de abrir o peixe, ficaram temerosos “de encontrar restos dos nossos camaradas falecidos”. Uma febre estranha atacou seis homens da guarnição, inclusive o pastor. Manoel, o cozinheiro português, foi o primeiro acamar-se com delírios. “Nessas febres da costa da África é necessário não ficar acovardado; por que se alguém se acovarda, em quatro dias morre”. E foi o que aconteceu com Manoel. “O corpo foi costurado dentro de um saco, com um chumbo para fazê-lo afundar, depois foi trazido para a popa, onde os ingleses e os espanhóis esperavam, eu li o modelo de Serviço Fúnebre para ser usado no mar: “Entrego seu corpo com honras no mar, esperando pela sua ressurreição, quando o mar deverá entregar seus mortos e a vida do mundo ocorrer”.
No final de abril durante uma noite, todos acordaram com gritos ouvidos no convés dos escravos. Ao verificar o motivo, denunciaram: “estão roubando água”. Confirmada a denúncia, foram responsabilizados sete elementos como autores do furto. “O mal resultante dessa delinqüência não é só da água retirada e sim a sujeira que fica dos trapos que eles mergulham nos barris para tirar o líquido”. Pela manhã os acusados foram amarrados no convés “e cada um recebeu de quinze a vinte chibatadas: um espanhol, um inglês e um negro forte se revezavam na tarefa”.
A LONGA VIAGEM
Após vários dias de calmaria o “Progresso” velejava sereno, acompanhado de cardumes de toninhas com os marinheiros tentando arpoá-las. Em poucos momentos o céu encheu-se de nuvens carregadas com os relâmpagos rasgando o horizonte, sinalizando o recolhimento das velas. Trovões rolaram acompanhando o vento e as ondas que varriam o convés. Os gritos dos negros recolhidos apressadamente ao porão, o ranger de cordas e do tabuado faziam crer que o navio estava prestes a se partir.
Ao se iniciar o mês de maio, o navio seguia sua rota em calmaria entrando num novo hemisfério. A estação fria se aproximava mantendo os negros aninhados no porão. “Os negros nus já estavam começando a tremer e a bater os dentes”, que aumentava à medida que o navio avançava para o norte. As noites eram geladas e em uma manhã “sete negros foram encontrados mortos e entre eles uma menina”. A morte estendia suas asas com mais calamidade sobre esses infelizes. Em seu diário o pastor registra as cicatrizes de letras marcadas no peito e nos ombros dos negros, que segundo um português da guarnição, é para marcar as iniciais de seus respectivos donos. “Quando o navio chega ao Rio eles podem reconhecer suas propriedades” acrescentando que “a condição do negro é muito pior no Rio onde eles andam esfarrapados e maltratados “como um escravo” do que em Havana, onde às vezes está mais bem vestido do que muito branco”.
Nova tempestade colheu o “Progresso” com “vento violento acompanhado de chuva” ceifando mais vidas de negros recolhidos ao porão. Pela manhã: “três mortos foram as primeiras coisas que meus olhos viram no convés; um homem coberto por um cabo de corda, uma coisa horrível e repugnante; o pobre menino que sofria com bicho-de-pé e que agüentou seu sofrimento com muita paciência e uma menina, cujos dois olhos ontem estavam completamente fechados por causa de uma inflamação na cabeça. Suas vidas foram durante um tempo, uma carga pesada para eles e não poderiam se mais prolongadas, mas com certeza foram encurtadas pela inclemência do tempo”.
As tempestades se sucediam com freqüência. Ao entrarem nas zonas de turbulências com nuvens ameaçadoras, antecipava-se o recolhimento das velas e os negros eram recolhidos ao porão. “Rajadas se sucediam umas às outras misturando mar e ar em um lençol pulverizador, cegando os olhos do timoneiro. Ondas subindo altas, acima de nós, jogando para o céu as espumas de suas cristas e ameaçando engolir o navio a qualquer momento”. Cavalgando sobre as vagas, o velho brigue transportava em seu interior “os gritos agudos dos doentes através da escuridão da noite, subindo acima do barulho dos ventos e das ondas, pareciam as coisas mais tristes de todos os horrores desse infeliz navio”.
Ao amanhecer a mesma rotina trágica: três corpos jaziam no convés para serem lançados no mar: “o de um homem e os de dois meninos, trazidos do porão para o convés”. O homem havia sido surrado por seus companheiros alguns dias antes, e naturalmente não agüentou a falta de ar no porão na noite anterior. Dentre as doenças dos negros que se manifestavam à bordo, “os casos de feridas ulceradas assumiam uma aparência tão horrível que eu agora mal consigo olhar. Esses pobres pacientes, também estão sem exceção, atacados de disenteria, da qual eles têm certeza que vão morrer mesmo se curados das feridas”. O estado de desnutrição era cada vez era evidente na aparência dos negros transportados pelo “Progresso”. “Um menino que estava a um estado que não se consegue conceber em um ser humano”, durante a administração de um remédio composto de camomila, “Antonio o fez sentar para beber, quando sua cabeça caiu para frente e morreu nessa posição”.
Navegando numa região de calmaria, um horrível mau cheiro passou a exalar do porão impregnando todo o navio. A mistura das fezes e do suor dos negros doentes e esqueléticos que não podiam se locomover para o convés e permaneciam asfixiados num calor sufocante, faziam com que a tripulação se sentisse incomodada, “e na nossa cabine na popa é quase intolerável”.
“Aparentemente nada se movia nem no ar nem no mar nem no céu, exceto os enormes albatrozes, com suas azas de dezesseis pés bem abertas, dando volta uma atrás da outra e, às vezes passando tão perto, que quase tocam a grinalda da popa na qual eu estava sentado”.
Ao entardecer sombras foram vistas no horizonte denunciando terras, confirmada ao amanhecer com o aparecimento dos pombos do Cabo, em conjunto com os albatrozes e várias velas que surgiam ao longe, suspeitando que fosse a “baia Plettemberg, entre a baia de Algoa e o Cabo, alguns negros apontam interessados e curiosos para lá, mas um grande número deles senta-se junto no convés, com suas cabeças descansando nos joelhos aparentemente em uma apatia total para tudo ao redor”.
A morte ceifaria naquela manhã mais três meninos. Seus corpos estendidos no convés eram parte da rotina diária, “embora, durante os últimos sete dias os casos fatais tenham atingido uma média de quatro por dia”. No dia 1º. de junho, o “Progresso” se aproximava da costa quando foram transportados do porão mais oito corpos, “e agora não podemos mais nos aventurar a joga-los ao mar como antes, porque as ondas podem leva-los para alguma praia desabitada da baia na qual entramos ontem à noite”. Na baia de São Simão, o nevoeiro desfeito deixou ver dezenas de mastros e velas de barcos que se confundiam ancorados ao largo.
O OUTRO LADO DO MUNDO
Aproximando-se do cais, o navio lançou ferros, sendo logo visitado pelo fiscal sanitário. Em seguida o superintendente do Hospital Naval, também foi a bordo conduzido pelo pastor, já que eram velhos conhecidos, visitou o porão destinado aos escravos. “Por mais que ele estivesse acostumado a cenas de sofrimento, ele foi incapaz de suportar a vista, superando tudo o que ele podia conceber de miséria humana. Uma menina pequena chorava amargamente, presa entre as tábuas e lutando para libertar seus membros enfraquecidos, até que lhe deram assistência”.
Desembarcando no cais e após um descanso, o reverendo dirigiu-se abordo do “Isis” para cumprimentar um velho conhecido: sir John Marchal. De volta para a terra resolveu fazer a última visita ao “Progresso”, onde encontrou mais seis corpos empilhados no convés junto aos oito do dia anterior esperando para serem enterrados na praia. Os mais saudáveis já tinham sido embarcados em vagões para a cidade do Cabo. Cada um dos que era liberado, diz o pastor em seu diário: “recebia um casaco novo e quente, calças, e eram colocados agasalhados em confortáveis em vagões abertos... passei pelos negros e não os encontrei mais conformados com a mudança da situação... Cada mulher tinha um cobertor branco novo, além de roupas... responderam aos seus nomes, mas mostraram poucos sinais de alegria na ocasião. Dúvida e medo predominavam e seus semblantes pareciam aqueles das vítimas condenadas”.
Durante a limpeza do navio foi encontrado um menino preso nas taboas do porão em adiantado estado de putrefação. “Parte de uma das mãos tinha sido devorada e um olho completamente roído pelos ratos... os doentes que desembarcaram ainda são numerosos”.
Após cinqüenta dias da viajem de volta ao continente africano, chegava ao fim um dos mais dramáticos depoimentos de fatos abomináveis que envergonham as relações humanas. O “Progresso”, navio brasileiro apreendido pela bandeira britânica com sua carga infame de 397 negros destinados ao Rio de Janeiro, chegava ao porto próximo à cidade do Cabo com 223 sobreviventes, reduzidos em 175 homens, mulheres e crianças que pereceram em condições degradantes.
POSFÁCIO
Percorrendo o Rio de Janeiro durante a primeira metade do século XIX, o viajante inglês G. W. Freireyss registrou uma visita feita ao mercado do Valongo: “Basta entrar numa das espaçosas salas de um traficante na Capital, para ver uma porção de negros recém-chegados divertirem-se à moda do seu país, o que o traficante lhes permite por que sabe que a falta de movimento e a nostalgia lhes diminuem o infame lucro. Encontramos aí alguns centos de negros nus e rapados, diversos tantos na idade como no sexo, que formavam uma grande roda, batendo palmas com toda a força, acompanhadas com os pés e com um canto gritado e de três notas apenas”.
Após as primeiras visões desta degradação humana, Freireyss assinala que os navios chegavam com a quarta parte de sua carga doente, “enquanto outros que trazem consigo os germens da moléstia, sucumbem poucos dias depois da chegada”.
Muito já se escreveu sobre a história social do Brasil desde o processo colonial. O tráfico negreiro é um desses temas que enodoam seu relato, iniciando com o aprisionamento de uma população ordeira do interior do continente africano por tribos litorâneas e negociando seus irmãos com traficantes de nações européias. Famílias inteiras transformadas em escravos contribuíram durante mais de três séculos para o esplendor econômico dos impérios coloniais incluindo o britânico, que se travestiu de inquisidor do tráfego negreiro no século XIX por interesses econômicos.
Escrevi esse relato resumindo o texto do livro: “Cinqüenta Dias a Bordo de um Navio Negreiro”, transcrito do diário de bordo do reverendo Pascoe Grenfell Hill, garimpado no raríssimo acervo do bibliógrafo e acadêmico José Mindlin, traduzido por Marisa Murray e publicado recentemente pela José Olímpio Editora, na coleção Baú de Histórias.
** Revisão do texto: Professor Wagner Cortaz
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