segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

BAIXADA URGENTE

TAQUARA - CONTRIBUIÇÃO À HISTÓRIA

Igreja de N. Sra. da Piedade de Inhomirim em ruínas

Guilherme Peres (Membro da Academia de
Letras de Meriti e fundador do IPAHB)

Abrangendo um imenso território com suas capelas filiais de “Serra Acima” e “Serra Abaixo”, a igreja Matriz de Nossa Senhora da Piedade de Inhomirim, (atualmente em ruinas)segundo monsenhor Pizarro que visitou essa paróquia no final do século XVIII, registrou sua criação no ano de 1677 “distante dois quarto de légua do Porto da Estrela”. Arruinada sua construção, obtiveram em 1700, de “Lourenço Álvares de Resende e sua mulher Helena da Cruz, a doação de 25 braças de terra em quadra à N. Sra. da Piedade além de mais 4 braças para casa de vivenda do pároco”.
Deliberando muda-la para mais próximo do Caminho do Inhomirim, os fregueses “conseguiram de João Martins Oleiro e sua mulher, a doação de 16 braças de terra de testada com 30 de fundo no campo da fazenda chamada Figueira, que se realizou no dia 1. de novembro de 1754”, iniciando sua construção com paredes de pedra e cal. Em seu interior “se levantaram sete altares, no maior dos quais tem assento o sacrário, onde permanentemente se conserva o Santíssimo Sacramento, cujo culto está a cargo de uma Irmandade ereta pela provisão de 29 de fevereiro de 1764”. A Igreja (foto) onde Luis Alves de Lima e Silva, o "Duque de Caxias", foi batizado, está em ruinas, sem que nem a Igreja, como instituição, nem o Ministério da Cultura ou o Governo do Estado tomem qualquer providência para recuperá-la antes do desabamento final.

DUQUE DE CAXIAS – Nascido no dia 25 de agosto de 1803 na fazenda São Paulo região da Taquara, o grande brasileiro Luiz Alves de Lima e Silva que mais tarde se tornaria o Duque de Caxias, usou sua espada para manter a unificação do território brasileiro durante o Império e a defesa do Brasil na Guerra do Paraguai. Foi batizado na “Freguesia de Inhomirim, aos doze dias do mês de setembro de mil oitocentos e três, pôs os Santos Óleos o padre Agostinho Lopes de Laet à Luiz, Inocente” conforme consta no assento de batismo que pertenceu aquela paróquia.
O TERRITÓRIO – Mencionando a fertilidade da terra, Pizarro relaciona os produtos da lavoura produzidos na região: cana, arroz, café, mandioca e legumes, relacionando: “duas fábricas de açúcar e três de aguardente se conservam no território abaixo da Serra; mas no tempo presente contam-se nove entre umas e outras”.
Citando os rios que faziam parte desse território, inicia com o rio Inhomirim que “fermentando entre a Serra Grande e a de Itacolomí, leva consigo o Rio do Ouro, pelo qual se divide a presente freguesia com a de Sururuí”. O Piabetá, o Bonga, o Caioaba, nascidos na Serra da Estrela “atravessa três vezes a Estrada Geral de Minas, se ajunta com o Saracuruna, pela qual finaliza o termo desta Freguesia e principia a da Freguesia do Pilar”.
Entre os portos fluviais, se refere aos dois “que se conduzem os efeitos do continente, são principais o da Estrela e de Anhum-mirim. No primeiro há suficiente numero de casas que formam um arraial belíssimo e acomodam notável porção de habitantes por todo o ano, sem o menor embaraço das pousadas em que se descansam os moradores de lugares distantes, e os viandantes de Minas Gerais acompanhados de fazendas de comércio”.
Descrevendo o comércio que se desenvolvia no Porto da Estrela, Pizarro afirma que “acham os caminhantes todas as provisões necessárias dos gêneros relativos ao alimento, à mercancia e as oficinas em casas estabelecidas e bem sortidas”. Referindo-se a Inhomirim: “vizinho à Matriz há outro arraial habitado por negociantes vários; e posto que compreenda menor número de edifícios e de casas mercantis é, contudo freqüentado pelos caminhantes da Estrada Geral para a Serra”.
CAPELA N. SRA. DO ROSÁRIO – Das capelas existentes “Serra Abaixo” sob sua administração eclesiástica, Pizarro menciona “a 1.ª de N. Sra. da Estrela, fundada a mais de 150 a 160 anos em sítio sobranceiro ao rio e porto de Anhum-Mirim, por Simão Botelho, irmão de Baltazar Botelho”.
A segunda capela é a de N. Sra. do Rosário, no sítio Taquara, que Pizarro diz ignorar sua fundação: “cuja antiguidade me foi oculta por não aparecer o seu título”. Entretanto, segundo Frei Cândido Spannagel (O. F. M.), a capela do Rosário na Taquara, vizinha da fazenda S. Paulo pertencente aos avós do Duque da Caxias e local de seu nascimento, “foi construída por Gonçalo Arieiras em 1743 e passou ao domínio do Cap. Ajudante Manoel Antônio em 1757; nesta data passou a fazenda e capela a ser propriedade do capitão José Cardoso de Mesquita a quem foi penhorada em 1794”, tendo sido arrematados em Praça Pública todos os bens que constituíam a fazenda, inclusive a capela, em 1798, pelo Dr. José de Oliveira Fagundes.
A sede da Fazenda da Taquara encontrava-se a cerca de dois quilômetros de distancia da Fazenda São Paulo, ambas situadas a margem da Estrada da Taquara.
Essa Capela foi assistida durante alguns anos pelo padre Luis José de Freitas Bello, tio do Duque de Caxias (entre 1809 a 1823) conforme consta nos livros de batizados da Paróquia de Inhomirim, conferidos por Frei Cândido Spannagel.

CAMINHO DE INHOMIRIM - Em terras doadas a Antônio da Fonseca ainda no final do século XVI e não ocupadas no prazo estipulado por Lei, essa grande sesmaria estendida a margem do Rio Inhomirim foi cedida a Domingues Fernandes, o “Cara de Cão”. Porém, também não sendo ocupada no prazo legal, o Governador Martim Correia de Sá, confirmou a posse de um novo sesmeiro, João Botelho, por despacho favorável de nove de setembro de 1603.
Em meados de 1650, seu filho Simão Botelho, construiu em um “monte sobranceiro” em frente ao porto, uma capela dedicada a Nossa Senhora da Estrela dos Mares, trazendo para essa região de terras férteis inúmeros sesmeiros, atraídos pela facilidade de transportar pelo rio Inhomirim, a produção agrícola em direção o Rio de Janeiro.
Bernardo Soares de Proença, sesmeiro em Suruí, também rasgou uma nova passagem, pela serra do Mar denominado “Caminho do Inhomirim”, iniciado à margem desse rio, subindo a serra e seguindo antigas trilhas indígenas passando por Córrego Seco, atual Petrópolis.
Concluído por volta de 1724, Aires de Saldanha comunicava ao Rei por carta em 11 de outubro desse ano a sua conclusão, e recebia a resposta através da Ordem Régia de 6 de julho de 1725, em que D. João V mandava agradecer a Bernardo Soares de Proença o serviço prestado “o qual ficava na Real Lembrança”.
O CALÇAMENTO - Tomando conhecimento das dificuldades encontradas nos caminhos de acesso entre o Rio de Janeiro e a região das minas, e o desejo dos súditos em realizar seu calçamento, D. João, Príncipe Regente, ordenou de Portugal através da Carta Régia enviada em outubro de 1799 ao vice-rei Conde de Resende “que fosse realizada essa obra desde logo”.
Durante as obras o vice-rei foi substituído por D. Fernando José de Portugal, acumulando as funções de Capitão-General do Rio de Janeiro, cujo estudo e planejamento foram entregues ao setor de Obras Públicas da Capitania.
Em 1802 eram iniciados os trabalhos e o vice-rei comunicava à Corte que “a parte mais impraticável de toda a estrada que é a serra da Estrela, no comprimento de légua e meia”, já estava em construção. Administrado pelo sargento-mor de Milícias, Domingos Francisco Ramos Fialho que planejou seu alargamento e medição, teve a supervisão contínua do capitão do Regimento de Engenheiros, Aureliano de Souza e Oliveira.
Este capitão era pai de Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho, futuro Visconde de Sepetiba. Nomeado presidente do Rio de Janeiro por Carta Imperial de 1º. de abril de 1847, veio a ser o 13º. chefe do governo fluminense. Foi ele que assinou os primeiros contratos de colonização em 1845 com os alemães, que ocuparam Córrego Seco, a futura Petrópolis.
“Além de sua grandiosa obra na Serra da Estrela” diz Carlos de Oliveira, “foi morador do Córrego Seco por alguns anos – entre 1802 e 1809 – ali chegando em companhia da esposa D. Francisca Flávia de Proença Coutinho e do filho primogênito Aureliano de Oliveira e Souza Coutinho”.
Projetada com um traçado mais extenso e sinuoso para atenuar o declive das rampas, seguia pelo mesmo atalho ao lado das vertentes do rio Caioaba, cujo objetivo “era transformar o trecho em pauta numa estrada pavimentada que permitisse o tráfego de carroças em quaisquer situações meteorológicas”. Foi previsto também “calçadas laterais, bueiros e calhas de granito, bem como o abaulamento da pista, para controle do escoamento das águas pluviais”.
Medindo um comprimento de “30 palmos” (6,60m) de largura, “segura por três ordens de meio-fios, com suplemento de calçada lateral que os seguram e ao mais corpo da obra” e segundo informaria mais tarde o Major Júlio Koeler o seu comprimento era de “uma légua e um quarto” (8.250 metros).
Com o açúcar ocupando primeiro lugar na pauta das exportações, no início do século XIX o café já despontava como seu forte concorrente. Era necessário adaptar a região de estradas carroçáveis, e não depender só do transporte dos tropeiros, iniciando no velho “Caminho Novo do Inhomirim”, até então a única via oficial de ligação entre Minas Gerais e a Corte seu “empedramento”, facilitando a passagem de carros de tração animal.
Em julho de 1809, S. A. o Príncipe Regente D. João visitou essas obras na Baixada Fluminense já no seu término, e apesar do longo tempo exigido para sua realização em virtude das dificuldades encontradas, fez questão de conhecer o trabalho que ordenara, transformando o antigo caminho lamacento em “calçada de pedra”. Elogiou o esforço de todos e promoveu o já então major Aureliano ao posto de tenente-coronel, que por mais de sete anos morou naquele “sertão” (Serra da Estrela), 1882/1889, até o término da obra.
Hoje quem visita esta estrada, se encanta com as condições de preservação em que se encontra. Exatamente igual a 200 anos atrás quando foi construída, graças ao período em que ficou protegida pelo exército, durante sua ocupação com a instalação da Fábrica de Pólvora.
ESTRADA DA TAQUARA - Incorporadas às atuais estradas ou perdidas nas matas que retomaram seu antigo lugar, esses caminhos são hoje os testemunhos vivos de nosso passado de Brasil Colônia, quando o ouro e as pedras preciosas desciam das minas gerais através da Baixada Fluminense, ou o café durante o período do Império.
Caminhos de referência aos viajantes que partiam da Corte em direção ao interior da Província, assistiram durante o século XIX a descida das mulas gemendo ao peso do café, do fumo, dos queijos e do açúcar. Por eles subiam as tropas carregadas de ferramentas, louças, roupas, bijuterias, vinhos, sal e azeite. “Era um movimento contínuo de grandes comitivas com sua escravatura, seus cavalos e bestas ricamente ajaezadas”. Dentro desse cenário surgiu a Estrada da Taquara.
Servindo de variante para a subida da Serra, ia encontrar-se com o Caminho de Inhomirim na região de “Córrego Seco”, hoje Petrópolis. Após um percurso de cerca de oito quilômetros, passava em frente a sede da Fazenda São Paulo, engalanada por uma alameda de palmeiras que se agitavam ao vento. Em seguida mais dois quilômetros e atingia a Fazenda da Taquara seguindo em direção a raiz da Serra da Estrela em seu lado Oeste.
Não temos registros sobre esse calçamento, ainda que tosco, mas acreditamos que foi também durante o período do Império quando era grande o transito de homens e animais entre Serra Acima e Serra Abaixo, e que resistem até hoje como provam os vestígios deixados em toda a sua extensão até atingir Petrópolis, no encontro com o Caminho do Inhomirim no bairro que recebeu o seu nome: Taquara.
Na segunda metade do século XVIII, abriu-se uma ligação dessa estrada com o Caminho do Pilar ou Caminho Novo de Garcia Paes, que ia encontrar-se entre as sedes das fazendas de São Paulo e da Taquara, aumentando as opções para os viajantes que partiam do Porto do Pilar e o Porto de Estrela, seguindo ou chegando ao interior da Província, segundo o estado dos caminhos.
Segundo um mapa que nos foi oferecido gentilmente pelo jovem historiador Edson Ribeiro datado de 1850 intitulado: “Carta Topográphica e Administrativa da Província do Rio de Janeiro”, vê-se assinalada a Estrada da Taquara iniciando-se no Caminho do Inhomirim, bifurcando-se para a direita e terminando no encontro do mesmo caminho na região de Córrego Seco, hoje Petrópolis.
Em pesquisas colhidas pelo historiador Luis de Oliveira, sobre o então primeiro tenente engenheiro Julio Frederico Koeler que dirigia os trabalhos de construção da futura Petrópolis, este apresentou um relatório em 1835 ao Presidente da Província, descartando obras nessa estrada devidos aos “limitados recursos pecuniários”, e assim se pronunciando: “Vai do Pilar ou Porto da Estrela pelo engenho da Tacoara, Serra dos Três Irmãos, fundo da Fábrica de Pólvora, sai no Córrego Seco; deve-se abandonar de fato”.
Entretanto, em 1841 o Governo interessou-se pela recuperação dessa estrada como vemos no Relatório apresentado pelo mesmo então major Koeler, conforme assinala Luis de Oliveira: “informava ter levantada a planta da Estrada do Córrego Seco à Taquara, representando o seu conceito sobre a importância dessa via de comunicação que com o passar do tempo voltara a ser procurada”.
RELATÓRIOS DA PROVÍNCIA – Baseando-me nos textos publicados nos “Relatório da Província”, e colhidos por Edson Ribeiro, incansável estudioso dos caminhos do passado na região sudeste, vemos referencias a essa estrada:
No ano de 1849: “Carece de melhoramentos o caminho que segue da Vila da Estrela a Petrópolis pela Serra da Taquara e que vai ter à Freguesia do Pilar”.
No ano de 1850: “Caminho da Serra da Taquara. O mau estado em que se achava esse caminho de reconhecida utilidade, quer para a colônia, quer para os fazendeiros que por ela exportam os produtos de sua lavoura, reclamava alguns reparos importantes, especialmente na parte compreendida entre a fazenda de Joviano Varela e o Alto do Imperador. Com o resultado de uma subscrição promovida por vários fazendeiros, deu-se princípio a esses reparos em outubro passado e já em dezembro estava o dito caminho muito melhorado”.
Em 1858: “Os reparos do Caminho da Taquara desde a Raiz da Serra até o Alto do Imperador estão quase concluídos e espero que a despesa não exceda a 3:000$, concedida pela Lei nº. 1.869 de 1857”.
Em 1859: “Estrada da Taquara. Os reparos dessa estrada, que vão desde aquele ponto ao Alto do Imperador, acham-se confiados aos cidadãos Domingos Antonio Bello e Henrique Isidoro Xavier de Brito, havendo-se despedido até agora a quantia de 7:000$”.
Em 1870: “Portaria de 22 de abril de 1869, mandou a diretoria proceder aos reparos precisos com urgência dede a raiz da Serra da Taquara até o alto do Quitandinha, nas raias das terras coloniais de Petrópolis. Contratou-se então por empreitada com o Ten. cel. Henrique Isidoro Xavier de Brito pela quantia de 14:000$. Não consta que tenham tido começo as obras, pois o engenheiro do Distrito nada diz, apesar das ordens em contrário”.
Em 1871: “Estrada da Serra da Taquara. Recebidas em agosto de 1871 as obras de reparo da ponte compreendida entre o Alto e o Campo do Quitandinha em um ponto denominado Caxoeira, que estavam a cargo do Cel. Henrique Izidoro Xavier de Brito. Havia também obras na Estrada do Taquarussú ao Inhomirim e Rio Taquara (desobstrução e canalização)”
PERCORRENDO A ESTRADA – Respondendo ao requerimento de D. Anna Quitéria Joaquina de Oliveira, viúva do Coronel Luiz Álvares de Freitas Bello, fazendeiro e negociante na Taquara, dirigida ao Intendente Geral da Polícia, Paulo Fernandes Vianna em 1809, o coronel Aureliano de Souza e Oliveira, encarregado da obra da Serra em texto colhido por Luis de Oliveira assim se manifestou:
“Passei logo que me foi possível ao território da Tacuara a correr todas as estradas, caminhos e portos que servem aqueles moradores e fazendeiros para suas exportações...havendo ali uma Estrada Geral muito pública , que descendo da serra da Tacuara passa pelo mesmo território, e vem ao Porto da Estrela...onde tem toda comodidade e prontos meios de transportes.
Advirto, contudo que o Caminho Geral que aponto primeiro, carece de ser consertado em alguns passos como os mesmos povos o desejam; para cujo fim convocados que fosse a dar quarenta escravos pelo tempo de três semanas, esses debaixo da direção de algum hábil fazendeiro faria um serviço vantajoso e útil ao público”.

“Quinze de setembro de oitocentos e nove.
Aureliano de Souza Oliveira -
Tenente Coronel encarregado da obra da Serra”.

Aqui vemos que o coronel Aureliano, sendo responsável pelas obras de calçamento do Caminho do Inhomirim, estava também empenhado em recuperar a Estrada da Taquara no início do século XIX, tudo levando a crer que ela serviu como variante àquele caminho durante o período do ouro, e havia interesse em dar continuidade ao transito durante ciclo do café.
BENS TOMBADOS – Pertencente ao 3º. Distrito de Duque de Caxias, o bairro da Taquara teve recentemente seus bens históricos tombados pelo Município, através do Conselho Municipal de Cultura baseando-se na Lei Orgânica dessa Cidade:
1º. – Museu Histórico da Duque de Caxias (antiga Fazenda São Paulo)
2º. – Igreja de Nossa Senhora do Rosário da Taquara.
3º. – Trajeto da Estrada Real denominado Estrada da Taquara.
Entretanto o Parque Municipal, uma reserva biológica pertencente à Floresta Atlântica denominado da Taquara, de responsabilidade da Prefeitura, está totalmente abandonado. Não há fiscalização e o corte de árvores é freqüente, ferindo frontalmente a biodiversidade da região e preocupando parte de seus moradores que dependem da água para sua sobrevivência, cada vez mais escassa.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Oliveira, Luiz de – “Quatro Caminhos de Pedra que Cruzam a Região Petropolitana” – Revista IHGB – 1985 – RJ.
Pizarro e Araújo, José de Souza Azevedo – “Memórias Históricas do Rio de Janeiro” – INL – Imprensa Nacional – 1945 – Rio.
Lazaroni de Moraes, Dalva – “Esboço Histórico e Geográfico do Município de Duque de Caxias” – Arsgráfica Editora - D.Caxias, RJ
“Relatório da Província do Rio de Janeiro” - anos: 1849, 1850, 1858, 1859, 1862, 1870, 1871
Kroker, Frei Aniceto - “Inhomirim, 250 anos de Paróquia” Ed. Vozes, 1956.
Macedo, Edson – Apostilas e mapas fornecidos referentes à região da
Taquara – 2007

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

BAIXADA URGENTE

A NAU DOS INFELIZES

Senhor Deus dos desgraçados!/ Dizei-me vós, senhor Deus!
se é loucura... se é verdade /tanto horror perante os céus?!
Castro Alves em “Navio Negreiro”

* Guilherme Peres (Pesquisador e fundador do IPAHB)

Na manhã do dia 6 de setembro de 1842, uma belonave britânica de 26 canhões denominada H.M.S.Cleópatra, adentrava a baia de Guanabara para uma escala de alguns dias destinados ao abastecimento. Sua missão nesta viagem era transportar o tenente-general sir William Gomm, que ia tomar posse como governador nas ilhas Maurício. Ancorado próximo ao porto estava barco “Malabar”, também de bandeira inglesa com 64 canhões, no qual fazia parte da tripulação o reverendo inglês Pascoe Grenfell Hill que por questões pessoais, pediu transferência para o “Cleópatra”. Extasiado diante da imensidão da baia, o pastor registrou em seu diário: “A magnificência incomparável da baia do Rio, apertada na entrada, depois se abrindo em uma circunferência de dezessete léguas; suas cem ilhas; as montanhas que a envolvem mostrando cada mudança de contorno, coberta por uma riqueza de verdura do litoral até os cimos... misturando seus cumes com as nuvens; tudo isso compõe uma variedade e beleza que dificilmente cansa a vista. A cidade do lado esquerdo da entrada fica a quatro ou cinco milhas de distância da entrada”.
Ao desembarcar em frente ao Hotel Pharoux, comenta o grande movimento do cais nos barcos que saíam ou chegavam levando e trazendo passageiros e víveres dos navios ancorados ao largo. Contemplou uma praça na qual observou uma grande profusão de frutas e verduras espalhadas pelo chão e apregoadas por escravos.
“Uma alegria cordial se misturam ao redor de um pequeno fogareiro de carvão onde eles fritam seus peixes ou cozinham sua raiz de mandioca e batata doce. O trabalho mais pesado que se vê na rua é o do carregador de café, que leva sacos pesados na cabeça com seus passos acelerados, ao som de chaqualhantes substâncias dentro de uma bexiga que o chefe do grupo sacode e os outros acompanham cantando”.
Critica com veemência o Brasil por sua condição de país escravista, comentando que os casos de tortura e crueldade não eram divulgados pelos jornais do Rio de Janeiro, apenas anunciando casos de negros fugidos de uma jornada sobrecarregada de trabalho e subnutridos “dependendo dos caprichos do mau humor ou da avareza de seu dono”. Assistiu a um leilão de “mais ou menos vinte e cinco escravos de ambos os sexos, decentemente vestidos sentados em bancos atrás de uma mesa comprida, onde um de cada vez subia para ser melhor examinado pelos arrematadores. Um ar de obstinação parecia expressar seus sentimentos de degradação por estarem sendo postos à venda.”
No dia 14 de setembro daquele ano o “Cleópatra” levantou ferros singrando majestosamente em direção ao oceano Atlântico, buscando o continente africano.. Ao iniciar essa viajem o pastor Hill não suspeitava que fosse testemunhar para a posteridade através de seu diário, talvez o mais contundente registro que temos conhecimento das condições degradantes de um navio brasileiro destinado ao transporte de escravos, após ser aprisionado pelos ingleses. Num tom seco e direto, o pastor narra a ventura desse barco “tumbeiro” denominado “Progresso”, que seguia para o Rio de Janeiro. Deixando as ilhas Maurício, o ‘Cleópatra” se dirigiu-se à foz dos rios da região da costa de Moçambique, infestada de barcos negreiros. “Um novo interesse aqui se ligava a cada nau que fosse vista. O mercado de escravos na costa da África no presente momento, está quase confinado aos distritos de Quelimane e Sofala, tendo cessado no Porto, graças aos zelosos empenhos dos últimos e do presente governador”. Ancorado fora da barra, no dia 23 de março de 1843 o comandante mandou uma barca subir o rio em direção a cidade de Quelimane, trazendo na volta uma carta do governador narrando que dois barcos brasileiros, o “Desengano” e o “Confidência”, foram capturados pelo brigue H. M. Lily, cuja tripulação composta de brasileiros e portugueses, apresentara-se a ele, tendo sido devolvidos aos seus respectivos países.
No dia 31, uma embarcação de dois mastros foi avistada ao longe “indo furtivamente ao longo da margem” tendo sido fracassado a tentativa do Cleópatra em contatá-la, alguns escaleres foram enviados “para vigiarem os pequenos rios ao longo da costa.”.
Ao amanhecer do dia 12 de abril “ao voltarmos para Quelimare, o vigia no alto do mastro principal percebeu a sotavento uma embarcação que pela distância mal era visível; mas sua localização tendo sido considerada muito suspeita, a ordem foi de dirigir-se para ela”. Um vento forte seguido de chuva dificultava a perseguição à estranha embarcação. Após algum tempo o sol voltou a brilhar revelando próximo um “bergantim de linhas arrojadas como nós... desmastrado durante a ventania”. De repente o barco içou as velas pôs-se em fuga desfraldando a bandeira brasileira, em resposta a bandeira britânica que tremulada no mastro perseguidor.
Posicionaram-se os homens da tripulação em torno aos canhões e ouviu-se o primeiro tiro de advertência em direção ao bergantim. Seguiu-se mais alguns outros, sendo ignorados pelo perseguido até que, perdendo distância, arriou as velas e aguardou aproximação de seu captor Um escaler conduziu um oficial para tomar posse do navio, e substituir a bandeira brasileira pela bandeira britânica, pois aparentemente não havia dúvidas quanto sua atividade de navio negreiro. Seguiu-se o capitão acompanhado do narrador deste diário e “um cirurgião para examinar o estado de saúde a bordo da presa”.

O APRISIONAMENTO
A visão do quadro degradante que o pastor viu, mesmo em sua narrativa fria é horripilante. Negros nus e famintos se atropelavam no convés do navio arrebentando barricas de farinha, “a raiz da mandioca em pó; outros tendo quebrado os caixotes seguravam grandes pedaços de carne de porco e de boi; e alguns pegaram aves das gaiolas e as devoravam cruas”. Panos torcidos eram enfiados nos tonéis de aguardente, “um forte rum brasileiro do qual beberam em excesso”. Os gritos ensurdecedores de alegria foram ouvidos depois que toda a tripulação inglesa subiu a bordo para livrá-los das correntes de ferro, as quais muitos deles ainda estavam presos. Após a tripulação de dezessete homens serem transferida para o barco inglês composto de três espanhóis e o restante de portugueses e brasileiros, foi avaliado a situação: tratava-se do navio brasileiro “Progresso”, deslocando cerca de 140 toneladas procedente de Paranaguá e seguia em direção ao Rio de Janeiro. Sua carga era composta de 447 negros. “Desses 189 eram homens, poucos, no entanto, passando dos vinte anos; 45 mulheres e 213 meninos”. Havia um grande número de doentes a bordo, suspeitando-se que a princípio fosse de 25, mais tarde descobriu-se uma quantidade maior.
Segundo a tripulação o comandante havia perecido afogado no porto de embarque. Tempos depois se descobriu que ele permaneceu escondido entre seus subordinados para fugir ao rigor das leis inglesas. Dois espanhóis e um português voltaram para o barco “Progresso” com a tarefa de cozinharem para os negros, juntamente com nove marinheiros, um tenente, um mestre quarteleiro, um contramestre e o pastor Hill, autor do diário do qual estamos seguindo seu roteiro.
Ao longo do tombadilho o pastor descreve os negros recentemente libertados, dormindo, enquanto a nave desliza suavemente à brisa do mar calmo. Corpos esqueléticos, uns sobre os outros, disputam o pequeno espaço. De repente, “o céu começou a se encher de nuvens e um nevoeiro espalhou-se pelo horizonte para barlavento”.
Os fortes ventos seguidos de chuva provocaram as cenas de horror que se seguiram, com os marinheiros querendo chegar até as cordas para recolher as velas, e a pisotearem os negros que se alvoroçaram aos gritos acompanhados da ordem de mandar todos descer para o porão. Durante a noite, o calor sufocante agitou “quatrocentos infelizes seres humanos apertados em um porão com doze jardas de comprimento... rapidamente começaram a fazer um esforço para voltar ao ar livre” através das escotilhas fechadas em cima deles.
“A única passagem de ar, o calor sufocante do porão, e, talvez o pânico da situação inusitada fez com eles pressionassem... acumularam-se nas grades, e agarravam-se a ela lutando por ar. Mas com isso barravam completamente a sua entrada. Posso afirmar sem exagero que os gritos, o calor “a fumaça do tormento deles” que subia não pode ser comparadas a nada desse mundo. Um dos espanhóis avisou-se que a conseqüência disso seria de muitas mortes.
Pela manhã, cinqüenta e quatro corpos de homens, mulheres e crianças foram conduzidas para o tombadilho e jogados ao mar. “Era uma cena horrorosa vê-los passar um a um, os membros enrijecidos cobertos de sangue e de sujeira” Outros estavam feridos ou fracos demais para se erguer. Haviam sido pisoteados. “Alguns ainda tremendo foram deitados no tombadilho para morrer, água salgada eram jogada sobre eles para revivê-los, e um pouco de água entornada em suas bocas”.
A refeição daquele dia consistia de farinha e água, “quase metade de meio litro que eles agarravam com inconcebível avidez... suas gargantas deviam estar ressecadas pelos choros e gritos que vararam a noite adentro”.
Na véspera de Páscoa, o pastor parece desabafar diante de tanta degradação: “O mundo não consegue apresentar um espetáculo mais chocante da desgraça humana do que esse nosso navio apresenta. Parece que uma cena tão angustiante possa ser testemunhada sem causar um efeito prejudicial no espectador... depois se familiarizando, ele vai em certo grau insensibilizando seus sentimentos”.
Dia de Páscoa, domingo, 16 de abril. Avistou-se o “Cleópatra” com sinais de que queria se comunicar, sendo feito a aproximação. Receberam “um velho português chamado Valerian, para ajudar a reparar nossas velas que eram velhas e fracas”, e um cirurgião assistente “que começou a examinar os doentes. A maioria dos casos era de disenteria e de ferimentos ulcerados. Um homem tinha uma profunda escara infeccionada causada por chicotadas. Uma pobre criança de seis ou sete anos perdeu quase todo o dedo grande do pé comido por “niguas”, ou seja, bicho de pé”.
O ROUBO DA ÁGUA
Na manhã de segunda feira, os meninos que anteriormente haviam sido rejeitados à bordo do “Cleópatra” por suspeitas de varíola, finalmente foram aceitos cerca de cinqüenta, pois se tratava de “violenta espécie de coceira”. Acompanhados de víveres para alimentá-los, consistindo de “dois sacos de arroz, um de milho moído, uma boa quantidade de carne-seca... que só desse último artigo o “Progresso” carregava um estoque suficiente para alimentar os negros durante dois meses”, além de seiscentos sacos de feijão miúdo, guardado abaixo do tombadilho dos escravos, arroz inferior, farinha, e “22 enormes tonéis, cada uma comportando cinco ou seis barricas cada”.
Referindo-se ao depósito de provisões o pastor registra: “armários trancados cheios de cerveja comum e de cerveja preta forte; barris de vinho; licores de várias espécies; macarrão; vermiceli; tapioca da melhor qualidade; caixas de picles ingleses, cada uma contendo doze vidros; caixas de charutos; uva moscatel; tâmaras, amêndoas, nozes etc.etc. Os viveiros no tombadilho estão cheios de aves e patos e tem onze porcos”.
O “Cleópatra” afastou-se rapidamente dando o último adeus de despedida. Durante a jornada o espanhol que fazia parte da tripulação anterior em atividade no navio brasileiro “Progresso”, revelou ao pastor dados interessantes de sua vil profissão. Narrou que durante os “dois ou três meses”, em que ficaram à espera do embarque da carga humana na praia, os negros ficaram muito doentes, “Alguns deles tinham vindo de longe no interior e chegaram em condições deploráveis e cinqüenta foram rejeitados como incapacitados para viajar”.
Curiosa a resposta do tripulante quando perguntado se acreditava no fim do tráfego de escravos, que cada vez mais era combatido pelas nações que assinaram um pacto para esse fim, “ele achava que no Brasil, onde havia grandes enseadas isoladas que facilitavam o contrabando, haveria uma grande dificuldade em suprimir o tráfego, embora se a autoridade do governo simpatizasse com a causa poderia fazer muito”.
O “Progresso” havia sido o quarto navio apreendido naquele ano. “Em Quelimane, oito ou nove navios pegam sua carga anualmente” continua o espanhol “e, calculando por baixo, com quinhentos escravos em cada um... agora nenhum escapa, é um trabalho para homens desesperados... Na costa leste os negros geralmente são pagos em dinheiro, às vezes em “fazendas”, algodão grosseiro a um custo mais ou menos de dezoito dólares por homem e doze por meninos. No Rio de Janeiro, seu valor estimativo é de 500 mil réis por homens, 400 mil réis por mulheres e 400 mil réis por meninos. Assim sendo uma carga de quinhentos escravos, a um preço vil, o lucro vai passar de 19.000 libras”.
Uma manhã um negro morreu e foi jogado ao mar. Seu corpo flutuou em torno do navio batendo contra o casco “de barriga para cima durante meia hora”. A tripulação ficou temerosa que algum tubarão pudesse alcançá-lo. Finalmente o cadáver se afastou para todo o sempre. O maior sofrimento dos negros era a sede. Com a água racionada eles sorviam as gotas de chuva que pingavam das velas. “Colam seus lábios nos mastros molhados e engatinham até as gaiolas das aves para compartilhar os alimentos”. Na hora da refeição, constando de feijão cozido com arroz, a comida era distribuída em tinas “ao redor das quais eles estão sentados em grupo de dez, e, a um sinal, começam a mergulhar suas mãos na mistura e com grande habilidade levam o conteúdo até suas bocas”.
. Um tubarão de grande tamanho foi pescado pela guarnição e serviu de refeição para os negros que se arregalaram com alegria durante a refeição. Porém, antes de abrir o peixe, ficaram temerosos “de encontrar restos dos nossos camaradas falecidos”. Uma febre estranha atacou seis homens da guarnição, inclusive o pastor. Manoel, o cozinheiro português, foi o primeiro acamar-se com delírios. “Nessas febres da costa da África é necessário não ficar acovardado; por que se alguém se acovarda, em quatro dias morre”. E foi o que aconteceu com Manoel. “O corpo foi costurado dentro de um saco, com um chumbo para fazê-lo afundar, depois foi trazido para a popa, onde os ingleses e os espanhóis esperavam, eu li o modelo de Serviço Fúnebre para ser usado no mar: “Entrego seu corpo com honras no mar, esperando pela sua ressurreição, quando o mar deverá entregar seus mortos e a vida do mundo ocorrer”.
No final de abril durante uma noite, todos acordaram com gritos ouvidos no convés dos escravos. Ao verificar o motivo, denunciaram: “estão roubando água”. Confirmada a denúncia, foram responsabilizados sete elementos como autores do furto. “O mal resultante dessa delinqüência não é só da água retirada e sim a sujeira que fica dos trapos que eles mergulham nos barris para tirar o líquido”. Pela manhã os acusados foram amarrados no convés “e cada um recebeu de quinze a vinte chibatadas: um espanhol, um inglês e um negro forte se revezavam na tarefa”.
A LONGA VIAGEM
Após vários dias de calmaria o “Progresso” velejava sereno, acompanhado de cardumes de toninhas com os marinheiros tentando arpoá-las. Em poucos momentos o céu encheu-se de nuvens carregadas com os relâmpagos rasgando o horizonte, sinalizando o recolhimento das velas. Trovões rolaram acompanhando o vento e as ondas que varriam o convés. Os gritos dos negros recolhidos apressadamente ao porão, o ranger de cordas e do tabuado faziam crer que o navio estava prestes a se partir.
Ao se iniciar o mês de maio, o navio seguia sua rota em calmaria entrando num novo hemisfério. A estação fria se aproximava mantendo os negros aninhados no porão. “Os negros nus já estavam começando a tremer e a bater os dentes”, que aumentava à medida que o navio avançava para o norte. As noites eram geladas e em uma manhã “sete negros foram encontrados mortos e entre eles uma menina”. A morte estendia suas asas com mais calamidade sobre esses infelizes. Em seu diário o pastor registra as cicatrizes de letras marcadas no peito e nos ombros dos negros, que segundo um português da guarnição, é para marcar as iniciais de seus respectivos donos. “Quando o navio chega ao Rio eles podem reconhecer suas propriedades” acrescentando que “a condição do negro é muito pior no Rio onde eles andam esfarrapados e maltratados “como um escravo” do que em Havana, onde às vezes está mais bem vestido do que muito branco”.
Nova tempestade colheu o “Progresso” com “vento violento acompanhado de chuva” ceifando mais vidas de negros recolhidos ao porão. Pela manhã: “três mortos foram as primeiras coisas que meus olhos viram no convés; um homem coberto por um cabo de corda, uma coisa horrível e repugnante; o pobre menino que sofria com bicho-de-pé e que agüentou seu sofrimento com muita paciência e uma menina, cujos dois olhos ontem estavam completamente fechados por causa de uma inflamação na cabeça. Suas vidas foram durante um tempo, uma carga pesada para eles e não poderiam se mais prolongadas, mas com certeza foram encurtadas pela inclemência do tempo”.
As tempestades se sucediam com freqüência. Ao entrarem nas zonas de turbulências com nuvens ameaçadoras, antecipava-se o recolhimento das velas e os negros eram recolhidos ao porão. “Rajadas se sucediam umas às outras misturando mar e ar em um lençol pulverizador, cegando os olhos do timoneiro. Ondas subindo altas, acima de nós, jogando para o céu as espumas de suas cristas e ameaçando engolir o navio a qualquer momento”. Cavalgando sobre as vagas, o velho brigue transportava em seu interior “os gritos agudos dos doentes através da escuridão da noite, subindo acima do barulho dos ventos e das ondas, pareciam as coisas mais tristes de todos os horrores desse infeliz navio”.
Ao amanhecer a mesma rotina trágica: três corpos jaziam no convés para serem lançados no mar: “o de um homem e os de dois meninos, trazidos do porão para o convés”. O homem havia sido surrado por seus companheiros alguns dias antes, e naturalmente não agüentou a falta de ar no porão na noite anterior. Dentre as doenças dos negros que se manifestavam à bordo, “os casos de feridas ulceradas assumiam uma aparência tão horrível que eu agora mal consigo olhar. Esses pobres pacientes, também estão sem exceção, atacados de disenteria, da qual eles têm certeza que vão morrer mesmo se curados das feridas”. O estado de desnutrição era cada vez era evidente na aparência dos negros transportados pelo “Progresso”. “Um menino que estava a um estado que não se consegue conceber em um ser humano”, durante a administração de um remédio composto de camomila, “Antonio o fez sentar para beber, quando sua cabeça caiu para frente e morreu nessa posição”.
Navegando numa região de calmaria, um horrível mau cheiro passou a exalar do porão impregnando todo o navio. A mistura das fezes e do suor dos negros doentes e esqueléticos que não podiam se locomover para o convés e permaneciam asfixiados num calor sufocante, faziam com que a tripulação se sentisse incomodada, “e na nossa cabine na popa é quase intolerável”.
“Aparentemente nada se movia nem no ar nem no mar nem no céu, exceto os enormes albatrozes, com suas azas de dezesseis pés bem abertas, dando volta uma atrás da outra e, às vezes passando tão perto, que quase tocam a grinalda da popa na qual eu estava sentado”.
Ao entardecer sombras foram vistas no horizonte denunciando terras, confirmada ao amanhecer com o aparecimento dos pombos do Cabo, em conjunto com os albatrozes e várias velas que surgiam ao longe, suspeitando que fosse a “baia Plettemberg, entre a baia de Algoa e o Cabo, alguns negros apontam interessados e curiosos para lá, mas um grande número deles senta-se junto no convés, com suas cabeças descansando nos joelhos aparentemente em uma apatia total para tudo ao redor”.
A morte ceifaria naquela manhã mais três meninos. Seus corpos estendidos no convés eram parte da rotina diária, “embora, durante os últimos sete dias os casos fatais tenham atingido uma média de quatro por dia”. No dia 1º. de junho, o “Progresso” se aproximava da costa quando foram transportados do porão mais oito corpos, “e agora não podemos mais nos aventurar a joga-los ao mar como antes, porque as ondas podem leva-los para alguma praia desabitada da baia na qual entramos ontem à noite”. Na baia de São Simão, o nevoeiro desfeito deixou ver dezenas de mastros e velas de barcos que se confundiam ancorados ao largo.

O OUTRO LADO DO MUNDO
Aproximando-se do cais, o navio lançou ferros, sendo logo visitado pelo fiscal sanitário. Em seguida o superintendente do Hospital Naval, também foi a bordo conduzido pelo pastor, já que eram velhos conhecidos, visitou o porão destinado aos escravos. “Por mais que ele estivesse acostumado a cenas de sofrimento, ele foi incapaz de suportar a vista, superando tudo o que ele podia conceber de miséria humana. Uma menina pequena chorava amargamente, presa entre as tábuas e lutando para libertar seus membros enfraquecidos, até que lhe deram assistência”.
Desembarcando no cais e após um descanso, o reverendo dirigiu-se abordo do “Isis” para cumprimentar um velho conhecido: sir John Marchal. De volta para a terra resolveu fazer a última visita ao “Progresso”, onde encontrou mais seis corpos empilhados no convés junto aos oito do dia anterior esperando para serem enterrados na praia. Os mais saudáveis já tinham sido embarcados em vagões para a cidade do Cabo. Cada um dos que era liberado, diz o pastor em seu diário: “recebia um casaco novo e quente, calças, e eram colocados agasalhados em confortáveis em vagões abertos... passei pelos negros e não os encontrei mais conformados com a mudança da situação... Cada mulher tinha um cobertor branco novo, além de roupas... responderam aos seus nomes, mas mostraram poucos sinais de alegria na ocasião. Dúvida e medo predominavam e seus semblantes pareciam aqueles das vítimas condenadas”.
Durante a limpeza do navio foi encontrado um menino preso nas taboas do porão em adiantado estado de putrefação. “Parte de uma das mãos tinha sido devorada e um olho completamente roído pelos ratos... os doentes que desembarcaram ainda são numerosos”.
Após cinqüenta dias da viajem de volta ao continente africano, chegava ao fim um dos mais dramáticos depoimentos de fatos abomináveis que envergonham as relações humanas. O “Progresso”, navio brasileiro apreendido pela bandeira britânica com sua carga infame de 397 negros destinados ao Rio de Janeiro, chegava ao porto próximo à cidade do Cabo com 223 sobreviventes, reduzidos em 175 homens, mulheres e crianças que pereceram em condições degradantes.

POSFÁCIO
Percorrendo o Rio de Janeiro durante a primeira metade do século XIX, o viajante inglês G. W. Freireyss registrou uma visita feita ao mercado do Valongo: “Basta entrar numa das espaçosas salas de um traficante na Capital, para ver uma porção de negros recém-chegados divertirem-se à moda do seu país, o que o traficante lhes permite por que sabe que a falta de movimento e a nostalgia lhes diminuem o infame lucro. Encontramos aí alguns centos de negros nus e rapados, diversos tantos na idade como no sexo, que formavam uma grande roda, batendo palmas com toda a força, acompanhadas com os pés e com um canto gritado e de três notas apenas”.
Após as primeiras visões desta degradação humana, Freireyss assinala que os navios chegavam com a quarta parte de sua carga doente, “enquanto outros que trazem consigo os germens da moléstia, sucumbem poucos dias depois da chegada”.
Muito já se escreveu sobre a história social do Brasil desde o processo colonial. O tráfico negreiro é um desses temas que enodoam seu relato, iniciando com o aprisionamento de uma população ordeira do interior do continente africano por tribos litorâneas e negociando seus irmãos com traficantes de nações européias. Famílias inteiras transformadas em escravos contribuíram durante mais de três séculos para o esplendor econômico dos impérios coloniais incluindo o britânico, que se travestiu de inquisidor do tráfego negreiro no século XIX por interesses econômicos.
Escrevi esse relato resumindo o texto do livro: “Cinqüenta Dias a Bordo de um Navio Negreiro”, transcrito do diário de bordo do reverendo Pascoe Grenfell Hill, garimpado no raríssimo acervo do bibliógrafo e acadêmico José Mindlin, traduzido por Marisa Murray e publicado recentemente pela José Olímpio Editora, na coleção Baú de Histórias.
** Revisão do texto: Professor Wagner Cortaz