ABORTO: UMA QUESTÃO RELIGIOSA
OU DE SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL?
“Quando eu cheguei
lá, eu fui recebida por um médico vestido de açougueiro, com um avental branco,
todo ensanguentado, e com instrumentos claramente artesanais, rudimentares. […]
Eu comecei a ter uma crise de vômito, enquanto o médico me tortura dizendo que,
se eu não tivesse procurado ele, eu não estaria vivendo aquilo”. O depoimento,
registrado no curta Clandestinas,
de Fádhia Salomão, é de uma mulher que teve que buscar uma clínica clandestina
para interromper a gravidez.
O destino dela foi diferente do da auxiliar
administrativa Jandira Magdalena dos Santos, 27 anos, encontrada morta depois
de ter desaparecido junto a outras mulheres, no dia 26 de agosto, quando
partiram em direção a uma clínica clandestina de aborto, no Rio de Janeiro. No
vídeo, a jovem conta que, com o apoio do namorado, saiu da clínica clandestina
e procurou assistência em outro hospital, de onde saiu sadia, após ter feito o
procedimento. Não sem antes escutar a enfermeira plantonista afirmar que ela
deveria dizer que sofreu um aborto espontâneo, pois do contrário o médico “ia
me deixar morrer”.
Em nota enviada à Agência
Brasil, o Ministério da Saúde afirma que o número de óbitos de mulheres
atribuído ao aborto passou de 3ª para 5ª causa de mortalidade materna de 1990 a
2012, queda que credita “à ampliação da rede de serviços à saúde integral da
mulher, ação efetuada pelo Ministério da Saúde em conjunto com as secretarias
estaduais e municipais de saúde”.
Apesar da dificuldade de acesso a esses dados, o
Instituto Anis conclui que o aborto deve ser prioridade na agenda de saúde
pública nacional. O mesmo posicionamento é defendido pela Anistia
Internacional, para quem o tema deve ser tratado como uma questão de saúde
pública e direitos humanos e não na esfera criminal.
Estabelecido como crime pelo Código Penal, o aborto é permitido no Brasil em apenas três
situações: quando não há outra forma de salvar a vida da gestante; quando a gravidez
é decorrente de estupro e a mulher ou representante legal dela opta por
interromper a gravidez e em casos de diagnóstico de anencefalia. Nesse caso,
incluído após julgamento do Supremo Tribunal Federal em 2012, fala-se em
antecipação terapêutica do parto.
Segundo pesquisa do Instituto de Bioética, Direitos
Humanos e Gênero (Anis), da Universidade de Brasília (UnB), mais de uma em cada
cinco mulheres alfabetizadas que possuem entre 18 e 39 anos já praticaram pelo
menos um aborto, ao longo da vida. Cerca de metade delas teve que ser internada
por conta de complicações, como perfuração do útero. A prática é mais comum
entre mulheres com menor escolaridade (23%), enquanto o percentual das que já
concluíram o ensino médio e é 12%.
Realizada em 2010, a Pesquisa Nacional de Abortos
utilizou a técnica de amostragem para chegar a esses números, afinal como
muitos casos são feitos em clínicas clandestinas, não há como obter dado exato,
mas muitas pesquisas tendam a dimensionar essa ocorrência. No documento Aborto
e Saúde Pública no Brasil, de 2009, o Ministério da Saúde destacou estimativa
de que 1.054.242 abortos foram induzidos em 2005. Já o Centro Feminista de
Estudo e Assessoria (Cfemea) aponta que cerca de 1 milhão de brasileiras
submetem-se a abortos clandestinos todos os anos.
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